Fora Journal
Quem chega à modesta rua em Algés que alberga o atelier de Carolina Piteira não imagina o que em breve lhe passará pelos olhos no interior deste espaço de muitas viagens, telas gigantes e cores, muitas cores. A pintora — atrevo-me, contudo, a chamar-lhe artista visual, já que outras texturas e materiais se impõem nos seus quadros — divide o seu tempo entre Lisboa e Londres, mas está quase a conquistar o mundo inteiro.
Um passo adiante e estamos lá dentro, incrédulas, sem saber bem para onde olhar. Carolina, de sorriso rasgado e um visível à-vontade de alguém que está acostumado a lidar de perto com telas de muitos metros de altura e de comprimento, dá as boas vindas à exploração visual das suas peças. É difícil ignorar o talento massivo que aqui se apresenta, particularmente o de um quadro em que Carolina está a trabalhar e que, no momento de publicação do artigo, as we speak, está em exibição read moreno Palazzo Zenobio, em Veneza, juntamente com outros, numa exposição a solo até quase ao final do mês. “Isto vem de pequenina”, começa por contar. “Sempre gostei muito de pintar e tinha jeito para desenhar, misturar as cores. Na escola já me chamavam ‘pintora’, e eu ficava muito triste porque eu queria era jogar futebol, apesar de ter gostado sempre de pintar”.
Aos nove anos, Carolina sobre um acidente grave que a obriga a ficar presa a uma cama durante seis meses. Impedida de se mexer, as únicas coisas que conseguia fazer era ver filmes e, claro, desenhar. “Foi um curso intensivo de desenho”, diz-nos. “Tive de usar um colete daqueles de ferro de sustentação da coluna e tudo. Um dia, já conseguia andar mais ou menos, fui ver uma retrospectiva da Frida Kahlo e lembro-me de pensar que era tudo muito intenso. Num dos quadros, a Frida tinha um colete igual ao meu. Pela primeira vez, relacionei-me com uma pintura, a pintura falou comigo. Fiquei muito arrepiada, um bocadinho emocionada até, e acho que foi um momento muito importante na minha vida e para o meu crescimento, pois vi e senti que a pintura falou mesmo comigo e me tocou. Aquilo que eu estava a sentir mais ninguém tinha sentido da mesma maneira”.
“Sempre soube que queria ser pintora”. Esta certeza confirmou-se uma realidade quando entrou na FBAUL – Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, na qual estudou durante dois anos até ir para Londres, graças ao programa ERASMUS, para o curso de Fine Arts da University of East London. “Correu tão bem que os professores me convidaram a ficar. No final do curso, ganhei um prémio de melhor aluna do ano e ofereceram-me um atelier para pintar durante um ano, para além de me ter inscrito noutros cursos de pintura e de ter ganho um prémio muito importante, o DegreeArt Signature Art Award com uma pintura da Rainha de Inglaterra com uma galinha na cabeça”. Foi, aliás, esta pintura que mudou um pouco a sua percepção do trabalho artístico que estava a desenvolver, pois foi um trabalho que suscitou muita curiosidade por partes dos professores da faculdade e, ao mesmo tempo, muito debate por parte dos alunos, o que a fez ver que “naquele dia, achei que não queria fazer mais nenhuma pintura que fosse bonita só por si. A arte é história. É muito importante olharmos para algo e sentirmos e vermos o que está por detrás”, conclui.
O que nos desperta a atenção nas telas que se acumulam, umas contras as outras, num puzzle encenado e bem estudado por Carolina, é a grandiosidade das pinceladas e o recurso à cor como meio de salvação de tudo. Observando mais de perto, contudo, é fácil deixarmo-nos levar pelas diferentes texturas que ali se imprimem através de colagens, materiais diversos que vão do tecido que trouxe da Índia à washi tape que usou num quadro que celebra a cultura japonesa. “Nas telas grandes, a mão solta-se de uma maneira mais interessante e dá-me mais prazer fazê-lo. Gosto muito de explorar culturas diferentes e o desafio vem da aprendizagem, da investigação, da viagem e da descoberta, pois não estou habituada a certos tipos de materiais. Por exemplo”, apontando para a washi tape que referimos há pouco e que tão delicadamente preenche uns centímetros da tela, “isto é um papel muito fininho, quase transparente, dobrado em três vezes para ficar com alguma cor”.
Esta inclinação para a tradição e para a preservação do que é manual faz parte de Carolina como pessoa e como artista. Para ela, o que faz sentido é explorar os ofícios “mais antigos, mais puros, mais autênticos”, e foi isso que a levou a começar a visitar estas culturas e a trazer os tecidos e os materiais típicos destes locais. A exposição “Dear India”, que apresentou em 2018, em Lisboa, em conjunto com o documentarista/videógrafo HumanEyes e o fotógrafo italiano Roberto Zampino, foi o resultado físico de uma viagem inesquecível à Índia que acabou por se tornar essencialmente numa viagem interior, que lhes trouxe uma riqueza tremenda em forma de fotografias, um filme e, claro, pinturas de mil e uma cores, tão características do país.
“Estou a lembrar-me de uma pintura, que é a vista de um drone, e sou eu sozinha no meio do rio Yamuna com um senhor que não falava inglês, ou seja, não diz nada. A Índia é muito barulhenta, um frenesim constante de pessoas a falar, carros a buzinar, os badalos dos animais, os macacos, as vacas a correrem de um lado para o outro — é caótico. Mas eu estava nessa gôndola, não ouvia um único ruído, só o som dos remos a baterem na água, e o sol começa a nascer e o rio fica todo dourado, um dourado lindo. Havia um templo numa margem que era rosa pálido com uns sinos e uns ornamentos dourados também. Do outro lado da margem, não havia nada, só verde. Estava naquele sítio, cansada da viagem toda, e de repente não havia nada, só o sol, e senti-me sozinha no mundo naquele momento, em paz, em ligação com o mundo. Senti-me desprendida das coisas que não eram importantes, do superficial”, revela-nos. “Naquele momento, larguei tudo e estava a absorver a natureza, e acabei por pintar esse momento, que foi único”.
When you get to the street in Algés home to Carolina Piteira’s studio you won’t be able to even understand what will soon be in front of your eyes. Inside the studio you find a space of many travels, giant canvases and colours, lots of colours. The painter — I even dare to call her a visual artist, for the use of textures and materials that Carolina brings together in her paintings — divides her time between Lisbon and London, but in my view, she is close to conquering the whole world.
One step forward and we are inside the studio, amazed, without knowing exactly where to look. Carolina, with her wide smile and clearly at ease as someone who’s used to dealing with such large scale canvases, welcomes us to explore her pieces. It’s hard to ignore the massive talent we come upon here, particularly of one large canvas Carolina is working on, which, at the time of publication of this article, as we speak, it’s being shown at Palazzo Zenobio, in Venice, among other pieces, in a solo exhibition to be held until nearly the end of the month. “It all started when I was a little girl”, she starts by telling. “I’ve always loved painting and I had a knack for it, drawing and mixing colours. In school the other kids used to call me ‘the artist’, who would made me a little sad because I would rather kickass at playing football with the boys. Though I have always enjoyed painting”.
When she was 9 years old, Carolina suffered a severe accident that restrained her to a bed for six months. Unable to move, the only things she did was to watch movies and, of course, draw. “It was an intensive drawing course”, she tells us. “I had to wear one of those metal spinal braces and all. One day, when I was recovering and able to walk again, I went to see a retrospective of Frida Kahlo, and I remember thinking that it was all a very intense experience. In one of the paintings Frida had a spinal brace just like mine. For the first time ever, I connected with a painting. It gave me chills, I even got a bit emotional and it was definitely an important moment in my life as I saw and felt that the painting really spoke to me and touched me. No one else felt that in the same way I did”.
“I have always known that I would become a painter”. This assurance turned into reality when she enrolled in FBAUL – Faculty of Fine Arts of the University of Lisbon. She studied there for 2 years until she went to London, through ERASMUS programme, transferring to the Fine Arts degree at the University of East London. “It turned out so well that I was invited to stay in London. At the end of the final year, I won a prize for best student of the year and I was given a studio to work for a year, and besides that I also applied to other painting courses and even got a very important award, the DegreeArt Signature Art Award with a painting of the Queen of England with a chicken on her head”. It was, in fact, this painting that changed her perception on the artistic work as it ended up arousing curiosity from her teachers at the University and, at the same time, debate from the students, which made her realize that “on that day, I knew I didn’t want to paint anymore just a beautiful painting. Art is history. It is so important to look at an artwork and feel and understand what is behind it”, she concludes.
The canvases in her studio are all over the place but organized like a puzzle. The grandiosity of the strokes and the appeal to colour as a means of salvation. Observing closely it is easy to let ourselves be drawn into the different textures of the works, various materials that go from fabrics she brought from India to the washi paper she used on a painting that celebrates Japanese culture. “On big canvases, the hand moves freely in a more interesting way and I take more pleasure from it. I love to explore different cultures and the challenges seem to appear when I look for different worlds, a new trip is a new discovery. Also I like to challenge myself by using different materials. For example”, pointing to the washi paper we mentioned earlier that so delicately fills out a few centimetres of the canvas, “this is an extremely fine paper, almost see-through, folded three times to give a little bit of colour and texture”.
This tendency towards tradition and the preservation of the handmade is part of Carolina as a person and as an artist. To her, what makes sense is to explore the “oldest, purest, more authentic” craftsmanship, and that is what led her to start visiting those cultures and bringing fabrics and typical materials of each region. The “Dear India” exhibition, which she presented in 2018, in Lisbon, together with the documentarist/videographer HumanEyes and the Italian photographer Roberto Zampino, was the physical outcome of an unforgettable trip to India that ended up becoming a journey within themselves, an unforgettable experience translated into photography, a film and, of course, paintings of a thousand colours, a strong trait of the country.
“I’m recalling a painting, which is seen from a drone’s view, and I’m alone in the middle of the Yamuna river with a man who didn’t speak English, and because of it he didn’t say a word. India is so loud, a constant frenzy of people talking, cars honking, the animal's jingles, the monkeys, the cows running everywhere — it’s chaos. But I was sitting in that gondola and I didn’t hear a sound, only the paddles touching the water, and the sun begins to rise, and suddenly the river becomes gold, of a beautiful golden tone. There was a pale pink temple on one of the river sides with some golden bells and ornaments, too. On the other side of the river, there was only green. I was there alone, exhausted from the trip and all of a sudden there was nothing, only the sun, and I felt completely alone in that moment, in peace, connected with the world. I felt detached from the things that weren’t important, from what's superficial”, she reveals. “In that moment I was just feeling and listening the nature, and I ended up painting that unique moment”.